O jornalismo que você lê é o jornalismo que você gostaria de fazer? Por quê? Que tal mudar isso?
O conceito de empreendedorismo em Mídia, no geral, e no Jornalismo, em particular, vai bem além do liberalismo marqueteiro de auto-enriquecimento que se vê nas redes
Correção: o artigo abaixo foi reeditado em 07/04 a pedidos esclarecedores porque o politicamente correto não é mimimi. É um avanço civilizatório.
As demissões em massa de jornalistas e publicitários que esvaziaram redações e agências nas últimas duas décadas não refletem apenas a emergência das redes sociais e a derrocada de um modelo tradicional de negócio que sempre se sustentou mais nos anúncios que no conteúdo. A mudança é muito maior e mais profunda. Três pesquisadoras da Universidade Federal do Rio Grande Sul - Liana Pithan, Marcia Cristiane Vaclavik e Andrea Oltramari - publicaram um artigo em que estudam o impacto das demissões em massa nas carreiras de jornalistas e a maneira como eles passaram a enxergar a profissão. O título é sugestivo: “Carreiras vulneráveis: uma análise das demissões da mídia como um ponto de inflexão para jornalistas”.
O artigo traz passagens irônicas. "Ao contrário de outros setores, cujas transformações foram bem registradas na mídia, as mudanças laborais e organizacionais do jornalismo não têm espaço sequer no noticiário cotidiano: “jornalista não é notícia”, dita o senso comum da atividade”, dizem as autoras, como se a mídia brasileira, algum dia, tivesse exibido a coragem de cobrir a mídia brasileira (como a americana faz rotineiramente, aliás). As conclusões são bastante interessantes. Há, por exemplo, a impressão de que os veículos falam de transformação e revolução digitais, mas a maneira de se fazer Jornalismo continua basicamente a mesma, com imensa importância ainda sendo dada a um meio que a geração da minha filha - 23 anos - já não consome mais: papel. E de fato, se um profissional que já fez a transição para o digital analisar com cuidado, percebe-se que os jornais tradicionais ainda não se deram conta das possibilidades infinitas do meio digital. A sensação é a de que os jornais digitais são, na verdade, versões do jornal de papel distribuídas em formato digital.
É incompreensível, por exemplo, que os suplementos culturais ainda sejam um repositório de agendas com uma ou outra entrevista de fôlego com mentes criativas ou meras celebridades (não se vê na cobertura, por exemplo, uma inteligente discussão sobre a indústria cultural como fonte de trabalho e renda ou como política pública). Eu sempre me perguntei - e cheguei a fazer o meu trabalho de conclusão do MBA em marketing digital na FGV sobre isso - por que os suplementos de cultura não são aplicativos? Ali o leitor poderia não apenas ler sobre programação cultural, mas fazer ele mesmo sua própria avaliação do evento (show, peça, filme, restaurante, passeio, etc.), comentar - e portanto, conhecer - as incontáveis mazelas associadas aos serviços culturais no Brasil (imóveis em mau estado, som/imagem ruim, preços inexplicavelmente altos, atendimento desleixado, dificuldade de acesso, falta de diversidade, problemas para estacionar o carro, violência no entorno, entre outros perrengues), comprar ingressos e guardá-los no próprio celular, geolocalizar o lugar do evento e montar a rota para chegar lá, postar imagens da experiência, entre outras possibilidades que o meio digital permite. E fazer dinheiro com isso. Seja vendendo aos donos dos estabelecimentos as avaliações recolhidas e analisadas dos leitores sobre seus negócios, seja identificando falhas de serviço que podem orientar na curadoria de uma programação de treinamentos para organismos como, por exemplo, a dupla Sesc/Senac. Porque não adianta ficar formando garçon se o problema dos restaurantes pode ser gerência e administração das casas. E há as parcerias possíveis entre os serviços (teatro e restaurante, show e bar, etc.), que poderiam remunerar o aplicativo a cada operação realizada ali.
Tudo isso é para dizer o seguinte: o fazer jornalístico mudou muito com a emergência do digital. O leitor, esse incompreendido acostumado a receber conteúdo curado, passou a ocupar um inédito protagonismo no consumo de notícias. E voltando ao artigo, percebe-se que os profissionais mudaram também a percepção que tinham do que é uma carreira em Jornalismo e como seguir fazendo Jornalismo profissionalmente. Se os empregos tradicionais acabaram ou se precarizaram, fazer Jornalismo em meio digital hoje é também ser o dono da própria plataforma jornalística. Você pode e deve ser o dono da sua própria mídia e multiplicar as vozes que ainda não são ouvidas, representar os que ainda não são vistos e diversificar os pontos de vista para além do status quo. E se os profissionais estão cansados de meios que se vendem como isentos e não são, que se financiam em obscuras parcerias pouco transparentes com instituições idem, que exigem intermináveis horas de trabalho para uma remuneração incompatível, que tratam temas de formas enviesadas e até levianas, que deixam de cobrir temas de interesse público por conveniências empresariais, que deixam de cobrir temas diversos porque a própria redação carece de diversidade, então seja bem-vind@ ao novo Jornalismo Nativo Digital.
Pelo início: qual a sua ideia jornalística?
Fazendo a mentoria de iniciativas para o International Center for Journalists (ICFJ) e para a Meta, percebi que há uma cabeça brasileira fértil em termos de projetos jornalísticos. Existe, por exemplo, uma demanda expressiva de projetos de Jornalismo Local, aquele Jornalismo que cobre - profissional e impecavelmente - um lugar específico, muito diferente das ofertas atuais que oscilam entre o "bloguinho de programas" na linha “as melhores trilhas para fazer acompanhado em Teresópolis” e aquele produto mequetrefe e jabazeiro que coloca na home do portal o anunciante que paga mais alto, a prefeitura amiga/financiadora ou as iniciativas dos amigos. Jornalismo Local, diga-se de passagem, nunca foi executado de forma ampla e profissional no Brasil de um modo geral. Muitos projetos de Jornalismo Local que eu vi não eram exatamente revolucionários, mas eram revolucionários porque traziam um Jornalismo de possibilidades digitais - produções audiovisuais, podcasts, pesquisas, interlocução ativa com o leitor, gráficos animados, para ficar nas mais óbvias - a uma micro cobertura que sempre foi tosca, limitada e raramente capaz de ouvir o principal público: os moradores e trabalhadores do lugar. É revolucionário porque, como dizia Alberto Caeiro:
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Há também os tópicos, grupos e atividades que são praticamente ignorados pela grande imprensa. O jornalismo de nicho já é uma característica do Jornalismo Nativo Digital. Quem não tinha voz passou a ter através da cobertura jornalística e não apenas da militância (que também existe e também se digitalizou). Não estou falando aqui de blogs opinativos sobre isso ou aquilo outro. Falo de portais jornalísticos que usam da metodologia científica do jornalismo (ela existe, tenha certeza) para discutir temas específicos com olhares inclusivos. Existe possibilidade de viés? Existe, mas qual Jornalismo não possui viés? E muito cuidado para não cair na armadilha de um discurso conservador e normativo que coloca qualquer cobertura que não defenda o liberalismo cristão do homem branco e heterossexual como “alternativa" ou “enviesada". Não é.
As questões e problemas são infinitos: pretos, femininos, LGBTQIA+, de portadores de deficiências pessoas com deficiência, de pessoas com a saúde mental aos frangalhos, de pessoas à procura de crescimento espiritual não-picareta, de servidores públicos (federal, municipal, estadual), de professores, de desinformação, de excesso de informação, de desempregados, de polarização. Você escolhe onde vai fazer o Jornalismo profissional que esses assuntos merecem e que não se vê em portais incensados pela internet.
E há os produtos jornalísticos (falaremos mais adiante, com mais calma, sobre a virada de se encarar o conteúdo jornalístico como um produto), que podem ser entregues em formatos variados: o jornalismo de dados que permite a produção de uma ferramenta de visualização de dados do porte de No Epicentro, um produto jornalístico digital criado por uma equipe multitarefa da Lupa - da qual eu tive o privilégio de fazer parte - e tão eficiente na sua tarefa de aproximar o impacto das mortes pela Covid-19 do leitor que foi replicado - com a ajuda da equipe da Lupa - por nada mais, nada menos que o jornal The Washington Post. É preciso entender que o digital permite a criação de um sem número de produtos jornalísticos que muita gente nem considera jornalístico. Eu mesmo ouvi de um colega que No Epicentro não era Jornalismo. Mas é óbvio que é. Assim como o Reload, um esforço de 10 plataformas de mídia (algumas citadas aqui embaixo) para trazer notícia para um público jovem e urbano, encerrado em 2022 por dificuldades operacionais e de financiamento (outro tema que vai tomar muito espaço de conversa aqui). Ou o Fiquem Sabendo, portal especializado no uso da Lei de Acesso à Informação, a famosa LAI, ferramenta importantíssima no jornalismo atual.
Por ora, é preciso que os jornalistas e estudantes de Jornalismo entendam que um bom começo de negócio/fazer jornalístico reside numa ideia de projeto ou de produto jornalístico consistente. Em que sentido? No ineditismo, a noção de que aquele fazer jornalístico foi pouco, nada ou porcamente explorado. Em arroubos de criatividade - no conteúdo, no formato/linguagem ou na distribuição. Numa execução relativamente fácil, ao menos no início. E, por fim, na chamada monetização, ou seja, na possibilidades do projeto captar recursos para a sua execução, incluindo a remuneração de quem o executa. Para nascer e para se desenvolver, aliás.
Parece complicado, mas a gente vai desfazer esse rolo. De cara, vou deixar aqui uma lista de plataformas nativas digitais que eu usei na minha pesquisa de mestrado para inspirar novas ideias, formatos, distribuições, captações. Explorem sem pudores.
1 LUPA: https://lupa.uol.com.br/
2 ARIJ: https://en.arij.net/
3 New Naratif: https://newnaratif.com/
4 Africa Check: https://africacheck.org/
5 Ojo Público: https://ojo-publico.com/
6 Animal Politico: https://www.animalpolitico.com/
7 Hromadske Radio: https://hromadske.radio/en
8 The Elephant: https://www.theelephant.info/
9 Chequeado: https://chequeado.com/
10 RISE Moldova https://www.rise.md/english/
11 CITE: https://cite.org.zw/
12 Mada Masr: https://madamasr.com/en
13 Chai Khana: https://chaikhana.media/en/news
14 Agência Pública: https://apublica.org/
15 Agência Mural: https://www.agenciamural.org.br/
16 Amazônia Real: https://amazoniareal.com.br/
17 Congresso em Foco: www.congressoemfoco.com.br/
18 Cultne.TV: https://cultne.tv/
19 Énóis: https://enoisconteudo.com.br/
20 Gênero e Número: https://www.generonumero.media/
21 JOTA: https://www.jota.info/
22 Marco Zero: https://marcozero.org/
23 Meio: https://www.canalmeio.com.br/
24 MyNews: https://www.youtube.com/channel/UCUM4-KGZEXC2pk6zRDL9jMQ
25 Nexo: https://www.nexojornal.com.br/
26 Ponte Jornalismo: https://ponte.org/
27 Projeto Colabora: https://projetocolabora.com.br/
28 The Intercept Brasil: https://theintercept.com/brasil/
29 Trovão Mídia: https://www.trovaomidia.com/
Para aprofundar o conhecimento
Livros, artigos, ensaios e o que mais puder ajudar na sua jornada pessoal.
Livro importantíssimo para a minha tese e excelente para qualquer pessoa que queira enveredar por uma mídia digital como projeto de vida. Tem na Amazon aqui, incluindo formato Kindle, pelo qual eu acabei optando. Sinopse: “Entrepreneurial Journalism” irá inspirá-lo e mostrar-lhe o processo por trás da construção de um negócio. Trabalhando em oito estágios claros e concisos, você explorará os segredos de startups de notícias bem-sucedidas (incluindo como elas estão ganhando dinheiro) e aprenderá como ser um iniciante, construindo um negócio de notícias inovador e sustentável do zero. Cada capítulo começa com a experiência de um empreendedor real, mostrando como jornalistas experientes e com senso de oportunidade encontraram o caminho para o sucesso. Mark Briggs ajuda você a dimensionar o mercado, dominar a tecnologia, transformar sua ideia em um produto ou serviço, explorar fluxos de receita, estimar custos e fazer um belo lançamento".