Jornalismo independente: diabeísso?
Cada nova onda jornalística emerge de uma nova demanda/realidade de público que já não se identifica com a comunicação feita pelos grupos de poder ou donos do discurso da onda anterior
Correção: o artigo abaixo foi reeditado em 16/05 por duas razões. Uma de distribuição. Não sei a razão, mas apesar de ter programado a newsletter para amanhã de manhã, como o usual, ela foi distribuída ontem pelo Substack. Não acontecerá de novo (espero). A outra é erro de digitação mesmo. É óbvio que a Revolução Industrial é do século XVIII. Obrigado, Nelson, pela observação.
Algumas vezes em que eu converso com jornalistas empreendedores que estão dispostos a montar uma nova e focada estratégia de cobertura jornalística, não é raro sentir nessas pessoas certa apreensão profissional, prima distante da “síndrome do impostor", nas quais o jornalista tem algum temor de que aquilo que ele está fazendo possa não ser exatamente jornalístico (ou Jornalismo). As razões variam. Pode ser focado demais num tema, pode ter adotado uma visão decolonialista sobre determinado assunto, pode ser voltado para a participação do leitor de forma pouco vista antes, pode ter uma pegada tecnológica absurda. Nessas horas, tem quem fique bolado ao ouvir de jornalistas tradicionais da chamada “grande mídia” que o seu trabalho ou a sua ideia não são, exatamente, “Jornalismo", mas ativismo. Ou radicalismo. Ou algo alternativo. Ou muito independente (no pior sentido).
Não se deixe contaminar. Eu já tinha dito aqui na segunda newsletter do nosso fórum de discussão:
“Muito cuidado para não cair na armadilha de um discurso conservador e normativo que coloca qualquer cobertura jornalística que não cubra e defenda o liberalismo cristão do homem branco e heterossexual como alternativa ou enviesada. Não é.”
Em seus estudos sobre a reportagem, o jornalista e professor Nilson Lage observa que os primeiros jornais começaram a circular a partir do século XVII por iniciativa da burguesia diante de um mundo em transformação com a ascensão do mercantilismo e do comércio, a decadência do feudalismo e da aristocracia e a necessidade de que essa nova classe possuísse e utilizasse canal para sua voz. A mesma classe que inspirou tanto a decadente aristocracia da Idade Moderna quanto o proletariado a fazer o mesmo, este último a partir da Revolução Industrial inglesa do século XIX XVIII, já na Idade Contemporânea, quando o jornalismo encontra a linotipia e a urbanização acelerada.
Ou seja, podemos considerar que cada nova onda jornalística emerge focada em uma nova demanda/realidade de público a ser atingida e que já não se identifica com a comunicação feita pelos grupos de poder e donos do discurso da onda anterior. Essa historicidade é destrinchada pelos autores James Hamilton e Chris Atton no livro Alternative journalism, não exatamente focando as novas plataformas de jornalismo digital, mas sobretudo diferenciando o que não é jornalismo feito por instituições do status quo, a conhecida grande mídia tradicional. E a tentativa dessas empresas — e das instituições de poder com elas alinhadas — de desqualificar qualquer atividade de fonte originada de modelos distintos de produção e distribuição como “não jornalística”.
Ao investigarem a epistemologia da notícia no jornalismo da grande imprensa, as normas profissionais de objetividade muitas vezes relativizadas, a base elitista desse jornalismo aliada à elite econômica e tecnocrática e o comércio hierárquico da produção de notícias estraçalhado pela internet, Hamilton e Atton mapeiam as práticas históricas e culturais de um fenômeno emergente diversificado e globalizado conhecido como jornalismo alternativo. Mas não por ser não-jornalístico, mas por se apoiar em novos fazeres jornalísticos, novas ferramentas, novo relacionamento com o público, nova percepção de produção midiática pautada por um conceito de ética mais amplo e discutível, novo e mais intenso interesse público — e de públicos específicos e declarados — e nova relação entre fontes de recursos e produção de conteúdo, onde o muro que separou por décadas (muitas vezes de maneira pró-forma) a redação do departamento comercial se transformou em ponte que, inclusive, sustenta hoje a prática jornalística para que ela seja, de fato, independente (caso de muitos crowdfundings, modelo em que os leitores doam para as instituições jornalísticas trabalharem, por exemplo).
E o que fica?
O que fica é um conjunto de características que diferenciam a produção jornalística de base digital atual da mídia tradicional sem que, com isso, este conteúdo seja considerado menos jornalístico do que o feito pelo mainstream:
O jornalismo alternativo procede da insatisfação não apenas com a cobertura mainstream de certas questões e tópicos, mas também com a epistemologia das notícias, ou seja, o conhecimento teórico de como nascem as notícias (e qual jornalista não sabe que muitas nascem da cabeça de editores para serem tornadas realidade nos textos e imagens de veículos jornalísticos?);
Grande parte do trabalho do jornalismo alternativo está preocupado em representar os interesses, pontos de vista e necessidades de grupos sub-representados na sociedade. Os grupos de poder e as elites já possuem seus veículos e redes de TV nacionais;
O conceito de jornalismo alternativo engloba do conteúdo mais assumido e adjetivado da chamada “mídia de utilidade pública ou comunitária” à variedade estonteante de blogs de jornalistas cidadãos e subculturas de fanzines (nichos específicos. Muito específicos);
Conteúdos meramente opinativos à esquerda ou à direita, sem que a produção de conteúdo seja fundamentalmente fincada na metodologia de apuração e reportagem jornalística, não são considerados nem jornalismo, nem alternativos;
A imprensa fora do mainstream espera ser independente do mercado e imune à institucionalização, mas possui graus diferentes de sucesso. Ou disposição verdadeira;
O conceito de alternativo é amplo e se inspira nos estudos das teorias de mídia radical de John Downing — com aspectos como dança, grafite, vídeo, internet, gravuras satíricas, canções de protesto, arte performática, rádio clandestina etc. —, da mídia cidadã de Clemencia Rodríguez e da noção de ativismo mesmo, como os veículos produzidos nos circuitos alternativos brasileiros durante a ditadura militar (e isso vai da produção de conteúdo denunciando abusos do regime a veículos de nicho, como o Lampião da Esquina, voltado para o público LGBTQIA+.
É bom lembrar que a história da imprensa no Brasil registra três tentativas de se implantar imprensa independente ainda no país colônia — duas vezes no século XVII e uma no século XIX, antes da chegada da família real portuguesa vindo fugida de Napoleão Bonaparte. Todas essas tentativas foram suprimidas pela Coroa, que não desejava em seu submisso território qualquer construção de narrativa que não seguisse as orientações da metrópole lisboeta. E se a imprensa régia vinda com a família real era o status quo da narrativa oficial da época, o fim da censura prévia em 1821 fez surgir os primeiros veículos brasileiros de imprensa. Boa parte deles procurava, justamente, mobilizar a opinião da Colônia contra a dominação imperial portuguesa, como conta Nelson W. Sodré. Não se registra de qualquer historiador a afirmação de que essa imprensa tenha se caracterizado por ser menos imprensa por tentar dar voz a quem, por séculos, nunca a possuiu.
Você foi ao Festival 3i?
Pois deveria. O Festival de Jornalismo Inovador, Inspirador e Independente (daí os 3 is) aconteceu aqui no Rio de Janeiro, na Casa da Glória, de 5 a 7 de maio, organizado pela Associação de Jornalismo Digital (Ajor), uma entidade que congrega justamente as maiores e mais interessantes plataformas de jornalismo nativo digital do Brasil hoje. Falou-se ali de tudo a respeito de Empreendedorismo Digital, incluindo como lançar uma plataforma jornalística, mas uma das mesas mais concorridas foi justamente o que a gente vai conversar com calma aqui ainda: novos caminhos para financiar o jornalismo. Tema igual - desenvolvimento de modelos inovadores de receita - foi tema do oitavo webinar do programa “Acelerando Negócios Digitais", projeto do ICFJ em parceria com a Meta. O “Acelerando" é uma das iniciativas mais importantes para os candidatos a empreendedores brasileiros ou par quem acabou de lançar seu portal na rede. A iniciativa mistura treinamento com mentoria e ainda financia os projetos mais interessantes, para que eles saiam do papel.
Se você não conhece o “Acelerando", sugiro que dê uma olhada no link acima e fique atento quando for aberta nova rodada do programa. Quem sabe você não consegue o apoio estratégico e financeiro para dar partida ao seu negócio?
Muito bom, mas a Revolução Industrial começa no Reino Unido no século 18.