Um artigo acadêmico sobre como começar uma startup de mídia - parte 2
Artigo foi apresentado durante o 21º encontro da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Jornalismo (SBPJor) e demonstra o interesse da academia pelo assunto
Acompanhar a jornada de nascimento de algumas das principais plataformas de mídia nativas digitais brasileiras e estrangeiras foi fundamental para entender como uma ideia na cabeça transformou-se em um empreendimento de fato. No caso da Lupa, o que financiou seu nascimento - contado na newsletter passada - é o que os empreendedores chamam de investidor-anjo, ou seja, uma pessoa ou instituição com recursos disposta a investir esse dinheiro num empreendimento que entende que possa ser importante e, ao mesmo tempo, sustentável.
No caso da Agência Pública de Jornalismo Investigativo, esse papel coube à Fundação Ford, que viu na ONG, fundada em 2011, um berço de jornalismo investigativo em potencial. Mas a gênese da Pública tem mais a ver com o programa de bolsas no exterior, citado por Warner, do que com o investidor-anjo. A plataforma nasceu em meio ao vazamento do Wikileaks, site criado pelo ativista Julian Assange, que revelou telegramas diplomáticos americanos considerados sigilosos a respeito da relação de Washington com o mundo, inclusive com o Brasil. Natália Viana, ainda uma repórter relativamente desconhecida no Brasil (havia trabalhado na revista Caros Amigos), foi escolhida pela equipe de Assange para revelar o material no país, o que fez numa parceria com a Folha de S.Paulo e O Globo. O contato com a equipe de Assange nasceu após o mestrado na University of London, onde Natalia teve contato com o jornalismo feito por entidades não lucrativas e pôde trabalhar com as mesmas entidades nos Estados Unidos, especialmente o Center for Investigative Reporting, movimentos realizados graça a bolsas de estudo, os chamados fellowships.
“Eu voltei do exterior com este modelo na cabeça”, diz ela, fundadora, codiretora e editora da Pública. Viana não sabia nada de administração, mas tinha a compreensão de que o jornalismo não era para ser vendido e tendia mais ao serviço público, tanto que os textos da Pública podem ser reproduzidos por qualquer veículo. A empresa nasceu com o espírito da internet inicial e da própria cultura digital, o de compartilhamento de ideias e do creative commons.” A ideia inicial de negócio jornalístico da Pública, portanto, era fazer reportagens investigativas longas para distribuição livre, mas a própria Viana admite que as três fundadoras — Viana, Marina Amaral e Tatiana Merlino — não faziam ideia de como poderiam sustentar financeiramente o modelo. E aconteceu com as três o que é bastante comum nas empreitadas brasileiras e em alguns empreendimentos internacionais: usaram suas próprias economias ou dedicaram tempo livre que sobrava de outros empregos para bancar o trabalho na startup, dando tempo para que a iniciativa conseguisse financiamento, patrocínio ou investimento. No caso da Pública, as sócias trabalharam com seus próprios recursos durante oito meses até que a Fundação Ford fizesse o primeiro aporte de US$ 5 mil, impactada com o trabalho de um pequeno núcleo jornalístico com acesso exclusivo ao escândalo do Wikileaks. Além dos recursos de fundações, fizeram campanhas de crowdfunding bem sucedidas.
Este modelo de recursos próprios também foi adotado pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias em 2013, em Manaus, quando decidiram fundar a Amazônia Real. Gastaram na empreitada poupanças pessoais e tocaram o projeto em paralelo a seus empregos. Mas a iniciativa, que começou cobrindo jornalísticamente a Amazônia, logo evoluiu para projetos específicos de formação jornalística de profissionais indígenas e cobertura de temas específicos das tribos bancados por fundações e instituições, por projetos.
Briggs volta ao tema “recursos iniciais” em seu livro de uma forma muito americanizada (como o ativo movimento de fundações filantrópicas do país voltado ao fortalecimento do jornalismo como pilar democrático), mas que não fica distante de algumas experiências brasileiras, ou seja, financiar o início do negócio com economias, investimentos ou recursos do próprio bolso e de parentes ou em troca de participações acionárias. Ele conta que muitos financiam sua startup usando seus próprios ativos, patrimônio e crédito. Este é um território perigoso e requer confiança no negócio. Ele recomenda que se impulsione o negócio gastando apenas o que sobra de uma remuneração atual ou uma renda acumulada sem propósito específico. Se o negócio vai gerar fluxo de caixa rapidamente, o uso de recursos próprios é uma saída ideal, porque, assim que o dinheiro começar a entrar, não há dívidas para pagar (Briggs, 2012, p. 154). “Embora você possa optar por oferecer ações em contrapartida, também pode simplesmente pedir um empréstimo a conhecidos”, escreve Audrey Watters, do agregador de conteúdo ReadWriteStart. Independentemente de ser um empréstimo ou um investimento, ele aconselha colocar os termos do contrato por escrito, mesmo que o empréstimo venha da própria mão (Watters, 2010, p. 1). E há o investimento inicial, que cresceu acentuadamente nos últimos anos, e agora é quase tão ativo no número de negócios (embora não nos valores em dólares) quanto o capital de risco. Os investidores-anjo pedem participação acionária em sua empresa e esperam um retorno (ao menos nos EUA). Para encontrar investidores-anjo, Watters recomenda networking. Muito networking.
O Meio, uma newsletter com as notícias essenciais do dia curada por uma equipe de jornalistas, surgiu em 2015 da cabeça do jornalista Pedro Dória e do executivo Vitor Conceição, os dois com bastante experiência em tecnologia, meios digitais e inovação. Dória cobria tecnologia como jornalista desde sempre, foi um dos pioneiros dos empreendimentos pontocom, ao integrar o time de jornalista da revista eletrônica NO., ainda em 2000, enquanto Conceição vinha de uma trajetória como executivo de tecnologia e inovação da FSB Comunicação. A experiência e os contatos no mundo digital trouxeram dois investidores, que complementaram com 20% os 80% que os próprios empreendedores haviam tirado do próprio bolso para montar a newsletter. Networking. “Entendemos que a gente precisava criar uma audiência mais qualificada, oferecer um serviço que resolvesse o problema das pessoas em termos de curadoria de notícias e depois cobrasse por conteúdos especiais, mais elaborados, mais profundos, mais sofisticados”, conta Dória sobre o modelo freemium da plataforma, que tem hoje 160 mil assinantes, dos quais cerca de 10 mil pagam. O mesmo networking ajudou o Meio a captar, em março de 2022, R$ 5 milhões em uma rodada de investimentos capitaneada pelo executivo Silvio Genesini, ex-CEO da Oracle e do Grupo Estado e ex-sócio da consultoria Accenture. Essa rede de pessoas conhecidas atrai os investidores para além do negócio propriamente dito. Ao menos facilita que eles tenham a chance de conhecer melhor as plataformas. Tanto que, em 2019, o JOTA conseguiu captar R$ 6,8 milhões em uma rodada de aportes liderada pela Astella Investimentos, mesmo ano em que o Nexo levantou US$ 920 mil da Luminate, fundação do casal Pan e Pierre Omidyar, este último o fundador do Ebay, justamente para garantir a sobrevivência de iniciativas de mídia.
A hesitação no passo de uma empreitada solo é difícil, mesmo quando se sabe o que se quer fazer. A dupla Ana Bonomi e José Orenstein, fundadores da plataforma de produção de podcasts Trovão Mídia, sabe bem disso. Eles entendiam do negócio de podcasts, já tinham na cabeça que poderiam monetizar fazendo produções sob encomenda para terceiros ou com patrocínios e anúncios em produções originais próprias — ou financiadas por plataformas de áudio —, mas também sabiam que, para que tudo desse certo, era preciso construir audiência e credibilidade próprias. Mas não deixava de ser tenso largar empregos remunerados confortáveis — Orenstein era editor do Nexo e Bonomi trabalhava no marketing do Banco Santander —, gastar recursos próprios economizados e se dedicar a empreender. Para eles, as maiores dificuldades acabaram sendo contábeis em termos de precificação: Quanto vale, afinal, o trabalho que se faz no fim das contas? Horas dedicadas? Como se calcula o imposto cobrado junto? Ou seja, nem tudo está garantido ou conhecido a priori, e muito vai se aprendendo à medida que o negócio sai do papel.
Na próxima edição, continuamos a estudar os casos brasileiros e alguns estrangeiros para que a gente depois faça um sumário sobre os modelos de ideação das startups de mídia.
Para aprofundar o conhecimento
BRIGGS, Mark E. Entrepreneurial journalism: how to build what’s next for news. Los Angeles: CQ Press, 2012.
WATTERS, Audrey. Five sources for early stage funding. ReadWriteStart, 14 maio 2010. Disponível em: https://readwrite.com/five-sources-for-early-stage-f/. Acesso em: 11 abr. 2021.