Entrando no 'mood' empreendedor e atualizando a ideia do que seja um jornalista
Digital muda noção de iniciativa empreendedora da empresa para o indivíduo e conceito passa a integrar a identidade do jornalista - empregado ou não
A emergência das plataformas de Jornalismo digital ao redor do mundo fez crescer o interesse no fenômeno do empreendedorismo para além do mercado jornalístico propriamente dito. Afinal, o encolhimento das grandes redações - e das agências de publicidade, também afetadas pela digitalização dos meios - acabou provocando um deslocamento de profissionais de comunicação para iniciativas individuais ou de pequenos grupos, tanto entre os que estavam no mercado e foram demitidos em incontáveis programas de enxugamento quanto os recém formados que já não enxergavam mais nas redações tradicionais um caminho de carreira sustentável.
Os pesquisadores holandeses Deuze e Witschge explicam esta mudança de paradigma em seu artigo de 2017 "Beyond journalism: Theorizing the transformation of journalism". Dizem eles: "Mudando a noção de iniciativa empreendedora – com suas conotações de eficiência, produtividade, empoderamento e autonomia – da empresa para o indivíduo, o conceito passa a fazer parte da identidade profissional de todo e qualquer jornalista, empregado ou não. Essa mudança ressignifica os trabalhadores como mais adaptáveis, flexíveis e dispostos a mudar entre atividades e atribuições, além de assumir a responsabilidade por suas próprias ações, sucessos e fracassos. Nesta economia empreendedora, jornalistas empreendedores cada vez mais iniciam suas próprias empresas – algo semelhante a seus colegas em outras partes do setor criativo iniciando agências-butique de publicidade ou gravadoras independentes, formando coletivos editoriais ou de reportagem, bem como empresas startups. O surgimento de uma cultura de startup é realmente global: desde os primeiros anos do século XXI, empresas do chamado 'novo jornalismo independente' (e geralmente em pequena escala e apenas online) se formaram em todo o mundo".
Curiosamente, empreender parece uma febre nacional. Em sua coluna no Globo, Miriam Leitão diz que “a pandemia mudou o mercado de trabalho brasileiro e foi o estopim para o crescimento do empreendedorismo. É o que mostra a edição 2022 do relatório da Global Entrepreneurship Monitor (GEM) 2022, realizado pelo Sebrae e pela Associação Nacional de Estudos em Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas (Anegepe). O levantamento detectou que 67% da população brasileira adulta está envolvida com empreendedorismo, seja porque já tem um negócio, está fazendo algo para ter ou deseja começar a empreender nos próximos três anos".
Voltando ao nosso tema, os pesquisadores holandeses observam uma tendência que começa a se tornar comum na Academia no exterior, ainda não materializada nos currículos de Comunicação no Brasil: enxergar o Jornalismo Empreendedor como elemento central da formação jornalística profissional, justamente pela cada vez menor oferta da oferta tradicional de posições em cargos de jornalísticos nas redações de mídias tradicionais, todas subvertidas pela emergência da comunicação digital. Eles citam Chris W. Anderson em seu artigo "The Sociology of the Professions and the Problem of Journalism Education", publicado no progressista Radical Teacher, que já em em 2014 afirmava: "Em geral, a indústria do ensino de jornalismo tem reagido de duas formas complementares à tríplice crise de disrupção econômica, disrupção tecnológica e declínio em autoridade cultural. Alguns têm argumentado que as escolas de Jornalismo deveriam se tornar “hospitais de ensino” para melhor casar pesquisa de comunicação com a prática da indústria. Outros afirmam que as escolas de Jornalismo precisam se tornar incubadoras empreendedoras, ensinando a seus alunos que a única certeza na indústria de notícias agora é a incerteza e que os alunos devem estar preparados para viver em um período de longo limbo do emprego, até criando suas próprias carreiras e suas instituições de notícias".
Ou seja, de cara constatamos o seguinte: os jornalistas precisamos desenvolver uma mentalidade empreendedora, estando ou não empregados. Se você tem um projeto de Jornalismo na cabeça ou na gaveta, isso parece óbvio (mas não é. Jornalistas não são criaturas preocupadas com finanças ou marketing). Mas se você está empregado numa corporação estabelecida ou startup jornalística de base digital (de verdade), perceba que o seu talento será medido não apenas pelo texto incrível e apuração idem de sua matéria.
Como observam Deuze e Witschge, toda a empresa de base digital e inovadora quer trabalhadores "mais adaptáveis, flexíveis e dispostos a mudar entre atividades e atribuições, além de assumir a responsabilidade por suas próprias ações, sucessos e fracassos". Assim como borraram os limites de atribuições dentro da grande ciência da Comunicação entre jornalistas, publicitários e relações públicas - as assessorias de imprensa querem e promovem em seus quadros profissionais cada vez mais capazes de realizar ações digitais nas três especializações -, os talentos jornalísticos também incluem hoje pensar formatos de divulgação do conteúdo e até mesmo possibilidades de se fazer dinheiro com eles.
Tenha isso em mente, de cara, antes de colocar seu projeto de pé. Convença-se disso. Todo o resto da empreitada fica muito mais lógico e fluido.
Crescem as ONGs-redações-digitais nos EUA em 2022
Deu no Nieman Lab de Harvard: o Institute for Nonprofit News constatou um crescimento de 17% no número de novas redações sem fins lucrativos (ONGs) em 2022, em um relatório anual divulgado em maio. O INN’s Index Report é baseado em dados espontâneos de 315 veículos de notícias sem fins lucrativos - cerca de 90% dos membros do INN - para 2022. No geral, cerca de metade dos meios de comunicação sem fins lucrativos estão focados em questões locais (184 redações), com o restante dividido entre cobertura estadual e regional (104 veículos) e aqueles focados em questões nacionais ou globais (106 veículos).
Para aprofundar o conhecimento
The Lenfest Institute é uma fundação dos EUA que se dedica a desenvolver o jornalismo local americano por meio de dicas e treinamento em modelos diversificados de receita, desenvolvimento de produtos digitais e equidade e representação. Se você ainda não assinou a newsletter dos caras, faça isso imediatamente. O chato do Lenfest é que ele tem um perfil muito americano porque está muito focado em jornalismo local, mas empreendedores jornalísticos de outras partes do mundo podem se beneficiar de suas dicas se souber separar a realidade do setor de levantamento de fundos nos EUA, por exemplo, da realidade brasileira. O chamado “fund raiser” (levantador de fundos) é uma profissão por lá, enquanto aqui é algo limitado ao profissional de que entende de editais para enquadrar projetos em leis de incentivo fiscal.
Mas isso já está mudando porque várias fundações ligadas ao setor corporativo brasileiro começam a se mexer na direção de projetos que variam de inclusão social, de gênero, de raça, de orientação sexual, além de outros que focam em temas como sustentabilidade, povos originais e até fortalecimento da democracia. E o que ensina o Lenfest? Ensina a como se aproximar das fundações, com preparar um texto para apresentar um projeto e solicitar fundos (grantwriting é como chamam, em inglês), como fazer uma rede de contatos poderosa e eficaz (a gente vai abordar esses pontos aqui individualmente). Confira aqui, por exemplo, um artigo com cinco dicas sobre como as redações podem aumentar o fluxo de dinheiro vindo de empresas e fundações corporativas parceiras. Alguns tópicos são americanos, você verá, mas algumas ideias podem ser muito úteis, como “entenda a missão da empresa e busque se aproximar das que conjugam dos mesmos interesses, ainda que isso não resulte em dinheiro rapidamente".
Aprendi muito.
Com certeza!