Desafios éticos e financeiros: o que está em jogo no empreendedorismo em mídia digital
Os financiamentos de novos negócios parecem estar secando, paradoxalmente num cenário menos "belicoso". Mas a alternativa - entrar em programas de financiamento de plataformas - é ético?
Semana passada (ainda pingando colírio no olho de quatro em quatro horas por conta de um procedimento cirúrgico), apresentei um trabalho sobre desinformação no Intercom 2024 - Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação - e, a certa altura do encontro, encontrei alguns empreendedores nativos digitais de vários lugares do país que me relataram um irônico e complexo cenário: muitas fontes de financiamento de fundações que, durante os ataques maciços à imprensa no governo passado, apoiaram incondicionalmente o chamado “jornalismo independente”(leia-se: aquele não vinculado a grandes grupos tradicionais e familiares de imprensa), recuaram a partir do novo governo.
Há nisso, de fato, muita ironia. Porque se vivemos um momento em que o próprio governo fala sobre políticas públicas de apoio/fomento a iniciativas independentes de imprensa - em contraponto a décadas de um cenário jornalístico desregulamentado sob as mesmas desculpas (vejam a ironia) de cerceamento à liberdade de expressão que as grandes mídias não enxergam hoje no caso das plataformas digitais -, então era de se prever um mar de recursos para ideias midiáticas e jornalísticas de todos os tipos. Não me parece o caso e muitas plataformas reclamam de um enxugamento nas fontes de financiamento dessa modalidade, mesmo com o incremento de concursos públicos envolvendo coberturas jornalísticas (os prêmios para coberturas de meio ambiente, por exemplo, cresceram em proporção aos problemas derivados do aquecimento global, numa abordagem - minha - muito superficial do setor).
O que não facilita a vida de ninguém. As políticas públicas de fomento não saem do papel e, em paralelo, ainda que ninguém fale nada com todas as letras, a impressão que se tem é que o setor privado passou a contar com o dinheiro do setor público para estimular as iniciativas de mídia. É como se as fundações achassem que o pior passou e a hora é de se voltar para o bom e velho assistencialismo da distribuição de cesta básica e da formação de mão de obra desqualificada de sempre (nada contra. Só constatando e amarrando um pensamento aqui).
Não há nenhuma contradição no relacionamento entre mídia/imprensa e setor privado, ainda que o espírito motor do jornalismo seja o interesse público numa realidade capitalista em que nem sempre os interesses privados são interesses públicos, apesar de toda a retórica Faria Limer/Lebloner. Há farta literatura e comprovação prática do famoso muro que separa os interesses comerciais dos interesses jornalísticos nos veículos, ainda que muita mídia - tradicional ou nativa digital - pose de isenta e defensora do interesse público sem o ser.
O que nos traz para outro dilema levantado por muitas novas iniciativas: aceitar ou não dinheiro das Big Techs para financiamento do negócio ou de projetos-produtos jornalísticos? Porque as plataformas de tecnologia - tipo Alphabet, Meta, Amazon, Apple e Microsoft - são massivamente acusadas por pesquisadores científicos, organizações da sociedade civil e até governos de, por conta de seus modelos de negócio, fecharem os olhos para a circulação predatória de desinformação e discurso de ódio em seus ecossistemas e lutarem contra a regulamentação. Trata-se de uma discussão ética com muitos desdobramentos e sobre a qual retornaremos em outras edições. Eu mesmo já fiz mentoria por anos para projetos dentro do programa Acelerando a Transformação Digital, uma parceria entre a Meta e o ICFJ. E os resultados, em termos de colocar de pé projetos jornalísticos e midiáticos inovadores, foram sensacionais. Temos mais veículos nativos digitais midiáticos e jornalísticos por conta desses e de outros programas, é inegável.
Mas (e tem SEMPRE um mas), este mês, o LatAm Journalism Review do Knight Center da Universidade do Texas publicou um artigo com o sugestivo título: “Apoio do Google a meios jornalísticos na América Latina pode levar à dependência, conclui estudo”. Eles se referiam ao seguinte:
“Em três edições na América Latina, o Desafio de Inovação da Google News Initiative (GNI) financiou 81 projetos que usavam tecnologia para abordar desafios como aumentar o engajamento do público e diversificar fontes de receita de organizações jornalísticas. Segundo o Google, o programa foi “projetado para estimular a inovação em torno da criação de um ecossistema de notícias mais sustentável e diversificado na região”.
No entanto, um estudo publicado recentemente apresenta uma perspectiva crítica sobre a iniciativa da Google para o jornalismo na América Latina, na África e no Oriente Médio. Os pesquisadores ouviram 36 beneficiários da GNI nas três regiões e argumenta que a iniciativa “fomenta a dependência” das organizações jornalísticas em relação às plataformas de tecnologia.
Também sustenta que a GNI é “uma ferramenta estratégica para a empresa lidar com as preocupações sobre seu impacto no setor de mídia” e uma maneira de a empresa “desviar críticas e amenizar possíveis escrutínios regulatórios” em países onde existe uma tentativa de regulamentar a atuação da plataforma, como no Brasil.
O estudo intitulado “The philanthrocapitalism of Google News Initiative in Africa, Latin America, and the Middle East – Empirical reflections” (“O filantrocapitalismo da Google News Initiative em África, América Latina e Oriente Médio – Reflexões empíricas”) foi realizado entre 2020 e 2023 pelos pesquisadores Mathias Felipe de Lima Santos, Allen Munoriyarwa, Lucia Mesquita e Adeola Abdulateef Elega e publicado neste mês no International Journal of Cultural Studies".
Ficou interessado? Dá uma lida lá no artigo e deixa aqui a sua opinião sobre tudo isso. A gente volta ao tema, com certeza. Ah! E não deixa de assinar a LatAm Journalism Review. Informação (contextualizada e evidenciada) é poder.